O que é o “modo de vida consumista” que tanto admiramos nos americanos?
A trivialidade cotidiana envolta na
expressão “sociedade de consumidores”, sobretudo por obra de sua recorrente
veiculação publicitária e midiática, mas também em virtude de certos apelos
políticos, é, no mais das vezes, enganosa. Sociedade de consumidores é uma
expressão que conceitualmente oculta os mecanismos de controle e, sobretudo, as
normais que regem o comportamento social típicos de nossa época.
Cícero Oliveira |
Que o consumismo defina a norma social para
o comportamento econômico que hoje é até mesmo politicamente desejável, é um
fato ostensivamente demonstrado na análise de Zygmunt Bauman à primeira e em
princípio estranha declaração do então presidente dos Estados Unidos, George W.
Bush, aos americanos logo após os ataques de 11 de setembro de 2001. No breve e
significativo capítulo “Consumismo é mais que consumo”, o décimo sétimo do
livro 44 cartas do mundo líquido moderno,
Bauman afirma o seguinte: [...] a primeira mensagem do presidente Georg W. Bush
aos americanos chocados e estupefatos diante do desmoronamento das Torres
Gêmeas emblemáticas da supremacia mundial dos Estados Unidos, atravessadas por
aviões pilotados por terroristas, foi para que todos ‘voltassem às compras’. A
intenção da mensagem era conclamar os americanos a retomar a vida normal.”
A conclamação política ao consumo no
“voltemos às compras” de Bush, convoca para o esforço de retomada das
atividades rotineiras, às práticas que definem a regra geral e a normalidade
social do cotidiano. Não há, portanto, quaisquer motivos que nos levem a
duvidar que “bem antes do ataque inimigo, os americanos já deviam estar
convencidos de que ir às compras era a maneira, talvez a única e com certeza a
principal, de curar todas as aflições, repelir e espantar todas as ameaças,
reparar todas as falhas”.
Mais do que simplesmente reduzir um
fenômeno excepcionalmente aterrador, estonteante e profundamente maligno à
condição de interrupção momentânea, embora dramática de certos engajamentos
regulares, a normalidade da convocação proclamada de dentro desse evento-limite
à vida civilizada (o terrorismo), denuncia o nível do compromisso, tanto social
quanto político, com a economia de consumo.
Não fosse pelo fato de encarnar a própria
normalidade da vida, voltar às compras imediatamente após os ataques de 11 de
setembro (como recomendava George W. Bush), seria, para dizer o mínimo, uma
grave violação ao luto nacional. A conclamação acima referida somente poderia
chocar aqueles poucos em cujos ouvidos ela não encontrasse eco e, assim, não
fizesse sentido. Portanto, a despeito da estranheza que aquela declaração
contém em princípio, não deve suscitar surpresa o fato de que ela não tenha
provocado espanto e nem mesmo o menor rumor. O consumismo era, já não apenas a
norma da vida social, como o traço mais emblemático da patética arte de viver,
da felicidade em sua concepção inteiramente americana.
Em Vida
para consumo, Bauman afirmou que “o consumismo chega quando o consumo
assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo
trabalho”. Em outras palavras, o consumo é o veredicto ou a própria condição
inegociável da vida em sua dimensão biológica, enquanto o consumismo é o
produto historicamente localizável de um certo sistema normativo para organização
da vida em sociedade. O consumismo, contraditoriamente, transforma em “forma de
organização” da existência humana a exigência básica da vida. A palavra
consumismo traduz assim a tendência em fazer do consumo o centro da órbita
social; a admissão desta atividade natural como o aspecto central e o
denominador comum de todos os interesses e envolvimentos humanos.
Um dos melhores contrapesos à mentalidade
atual (de origem americana), cujo estreito horizonte tende a ser limitado ao
consumo, nos vem da boca de um antigo filósofo chamado Heráclito. Criticando a
satisfação com o contentamento animal de uma vida consagrada ao consumo (a
saciedade) e a indigência mental de alguns de seus contemporâneos, Heráclito
escreveu: “os melhores dentre os homens preferem antes de tudo a grandeza [a
fama imortal], os piores dentre os homens se contentam em fartar-se como gado.”
Cícero Oliveira é Doutor em filosofia
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