PAPAI NOEL: O apelo consumista do Natal

Um dos males do nosso tempo é constituirmos uma sociedade que faz do consumo o seu projeto de vida, e que vem ganhando adeptos a cada dia



Cicero Josinaldo: O apelo consumista do Natal
A inconfundível cena de uma mulher grávida, que após uma viagem de fuga com o marido, termina por fazer o trabalho de parto em um estábulo, e portanto dando à luz a uma criança cujo único lugar que pode ocupar na ocasião de seu nascimento foi uma manjedoura, deu origem (no século IV d.C.) à celebração cristã mundialmente conhecida como Natal. Do seu início à sua difusão, ao longo da Idade Média e parte da Idade Moderna, o Natal que inconfundivelmente (para cristãos e não-cristãos) significava a celebração do nascimento de Cristo, sofreu mudanças fundamentais, sobretudo a partir dos séculos XIX e XX. Ao contrário das celebrações atuais que são caracteristicamente marcadas por presentes, árvores decoradas e a conhecida figura do Papai Noel, as primeiras celebrações eram predominantemente religiosas, oficiadas por cerimônias que não deveriam perder de vista o verdadeiro foco da festa natalina. Com efeito, é com essa preocupação que no século V d.C., o papa Leão I se dirige aos cristãos de Roma, quando os exorta a comemorar o Natal em seu espírito religioso, isto é, moderando os vícios e praticando as virtudes.

Entre as numerosas transformações sofridas pelo Natal, do período que parte de seu nascimento e vai até a sua consolidação como uma das principais celebrações religiosas do Ocidente, merece a atenção de cristãos e não-cristãos o fato altamente significativo de que a partir do século XIX, e, sobretudo do século XX, o conteúdo religioso dessa celebração tenha cada vez mais cedido lugar à sua exploração comercial, de tal modo que seu sentido original está em vias de ser completamente obscurecido. A maneira mais resumida e, ao mesmo tempo mais significativa de expor a mudança do significado do Natal, de evento essencialmente religioso para evento predominantemente comercial, é mencionar o quanto a sagrada figura do “Deus-menino” teve de ceder lugar à emblemática e moderna figura do Papai Noel.

Até antes do século XIX, período que marca as transformações que deram origem ao Papai Noel como hoje o conhecemos, o bom velhinho era uma referência que se fazia ao bispo são Nicolau, descrito como piedoso e bondoso – com o hábito de distribuir presentes sem contudo revelar sua identidade. O Papai Noel, enquanto referência a são Nicolau, significava uma espécie de personificação simbólica das virtudes que segundo as orientações da Igreja, devem presidir as celebrações natalinas. O sentimento religioso que inspirava os atos do bispo são Nicolau foram tipificados na imagem do bom velhinho – imagem que também foi inspirada nas características físicas do bispo (dotado de uma grande barba branca).

A caridosa figura de Noel, que até então estava propriamente ligada à celebração religiosa do Natal, ganha um significado inteiramente novo no instante em que o capitalismo dos séculos XIX e XX pôde se dar conta do extraordinário potencial econômico de tal imagem. Mais precisamente, esse potencial passou a ser explorado desde o instante em que o artista Haddom Sundbom, atendendo uma demanda da empresa Coca-cola, cristalizou no imaginário popular a imagem de Papai Noel como nós a conhecemos hoje, ou seja, um agradável senhor de sorriso fácil e de grande bondade, equipado com um saco cheio de generosos presentes e vestindo roupas invernais com um grosso cinturão de couro. Dotado ainda de uma longa barba branca. Apesar de nesse tempo já existir a imagem de um bom velhinho diretamente relacionada ao Natal em sua dimensão religiosa, devemos à Coca-cola a definição comercial do perfil com que ele se consagrou no imaginário popular.

Devemos à moderna figura do Papai Noel, uma mudança que à primeira vista parece impraticável: a transformação de uma celebração de conteúdo essencialmente religioso no maior apelo comercial e consumista que supera recordes de vendas, ano após ano. A prova mais irrefutável da apropriação comercialmente adequada do Natal que o capitalismo soube operar (esvaziando seu conteúdo religioso), nos é dada pelo fato da atual figura do bom velhinho substituir a imagem do “Deus-menino” com a vantagem de juntamente com ela, retirar o aspecto religioso com o qual seria um constrangimento fazer do Natal cristão, por exemplo, tema para a decoração de shoppings centers e instrumento de marketing para “arrebanhar” consumidores. Certamente, nada seria mais constrangedor e contraproducente aos propósitos comerciais de shoppings e do comércio em geral, do que representar o nascimento de um menino pobre em lugares que poderiam ser perfeitamente definidos como “templos do consumo” (Zygmunt Bauman).

Um dos males do nosso tempo, com o qual ao que tudo indica teremos de viver por algum tempo (não se sabe quanto), é o fato de constituirmos uma sociedade que deliberadamente assume a tendência de fazer do consumo não apenas um projeto de vida, mas o único projeto de vida que a cada dia ganha mais adeptos. A sociedade de consumidores, que como procurei mostrar em dois em outros lugares, é compreendida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman como uma sociedade que faz do consumo a meta da sua própria existência, nos coloca sob o risco de condenarmos toda a cultura humana ao status de objeto de consumo, isto é, de igualarmos o valor e a função social da arte, da literatura e mesmo das religiões, às coisas compramos, usamos e descartamos quando bem queremos. Sem levarmos em conta que, a desgraça de uma sociedade que se concebe antes de tudo como uma sociedade de consumidores, é a de levar à ruína o próprio mundo que ela habita.

Poucas coisas escapam hoje da normatização do comportamento pelo consumo. Em nossos dias a expressão “turismo religioso” é sintomática na medida em que indica o quanto o espírito religioso sincero está sujeito ao risco de ser seduzido e equacionado ao comportamento do consumidor de “espiritualidade” e de artigos religiosos. Haveria que analisar em uma reflexão específica se e o quanto as próprias igrejas ou religiões têm incentivado tal equação. Me parece que essa hipótese aponta para uma das pesquisas mais interessantes, polêmicas, críticas e necessárias a respeito de certas religiões no contexto atual, incluindo aí as protestantes e seguramente a Igreja Católica, que segundo minha tese é uma das que na realidade fomenta aquilo que no âmbito discurso pretende combater.



Cícero Josinaldo é doutor em filosofia.



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