Reforma previdenciária: a verdade e a mentira
Decidimos
fazer, a quatro mãos, um breve estudo sobre a reforma previdenciária
(PEC 287).
Os autores Marcus Vinícius e José Francisco discutem a reforma da previdência. |
Só
o estamos fazendo pela estranheza que nos tem causado a intensidade
da discussão sinalizando um cataclismo iminente e, particularmente,
o empenho governamental, gastando mundos e fundos em publicidade, a
favor da reforma, além da completa simpatia pela reforma da grande
mídia em geral, o que é minimamente digno de suspeita.
Claro
que, inundada de anúncios públicos pagantes, a mídia não se
levantaria. Nem os mais extremados. Os economistas, escutados pela
própria grande mídia, sempre e curiosamente os ligados ao setor
financeiro, apoiando e afirmando verdades de que quem não apoia é
néscio. A reforma seria a demonstração de que o país está
caminhando para o futuro com responsabilidade! O ministro, banqueiro,
visitando bancada por bancada do Congresso Nacional...
Não
existe coincidência! É articulação mesmo! De pronto, existirá um
grande ganhador com a reforma e não é o erário: serão os planos
de aposentadoria privada. Em verdade, estes seriam os grandes e
talvez únicos ganhadores. Tal qual em outros setores onde o Estado
não presta seus serviços a contento, obrigando boa parte da
população a pagar para ter acesso a eles (como saúde, educação,
segurança etc.), impedir que as pessoas se aposentem, pela via
pública, em tempo de fruir da aposentadoria, seguramente induzirá
as pessoas a contratarem planos privados. Isso já acontece, como
dissemos, na saúde, onde as pessoas contratam planos de saúde
porque sabem que não terão tratamento na rede pública. Este é
apenas um exemplo.
E,
pensando apenas nos conceitos e nas teses do liberalismo econômico,
se o setor privado tem interesse em assumir a um determinado negócio
ou mercado é, certamente, por que este negócio é lucrativo.
Todavia,
vamos à análise da reforma.
Primeiramente,
queremos deixar claro: somos a favor de uma reforma, mas não desta.
Reforma não pode significar destruição. Deve abarcar a ideia de
readequação, remodelação para o uso. Como
primeiro argumento, contra a reforma proposta, vamos explicar o
porquê de nossa contraposição à afirmação de que a previdência
está quebrada.
Vários
têm sido os artigos publicados por ferrenhos defensores da reforma
e, meramente como ilustração, nos referiremos ao artigo publicado
no jornal Valor Econômico, pelo professor Fábio Giambiagi, que
constrói seu raciocínio, para efeito de simplificação, como ele
mesmo afirma, considerando que o Governo Federal inclui duas
entidades, o Tesouro Nacional e o INSS.
Prosseguindo
em seu argumento, o Governo Federal tem duas receitas, impostos e
contribuições (exceto a previdenciária), já o INSS tem apenas uma
receita, a contribuição previdenciária. De outra parte, o Governo
Federal tem um só gasto, as despesas gerais, enquanto o INSS tem
dois tipos de gastos: os benefícios urbanos e os rurais.
Ainda
segundo o professor Fábio Giambiagi, o “batalhão antirreformista”
faz uma “manipulação algébrica”, pretendendo deslocar as
receitas das contribuições, hoje receitas do Governo Federal, para
o INSS e repassar os benefícios rurais, hoje despesas do INSS, para
o Tesouro Nacional.
A
conclusão da tese é que, ao final, o resultado é o mesmo, pois a
soma de todas as receitas, com a dedução de todas as despesas, quer
sejam do Tesouro Nacional ou do INSS, determinam o resultado do
Governo Federal, que não seria alterado pelo simples deslocamento de
receitas e despesas de uma para outra entidade, por ele definidas
como o Tesouro Nacional e o INSS.
Onde
está o erro?
O
erro é conceitual. Os impostos são tributos não vinculados, por
definição legal. O que isto quer dizer? Na definição do CTN,
significa que imposto
é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação
independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao
contribuinte, ou seja, não há, na imposição do imposto,
contrapartida determinada do Estado ao contribuinte.
Já
as contribuições, previdenciárias ou não, são tributos
vinculados, o que significa dizer que são tributos devidos em
decorrência de uma prestação estatal em proveito direto do
contribuinte. Acertado
o conceito, a aplicação contábil deve, logicamente, ser adequada
ao conceito.
Em
verdade, a União ao arrecadar a contribuição previdenciária e as
demais contribuições sociais, nas modalidades COFINS, PIS/PASEP,
CSLL, deve verter todos esses valores aos cofres da seguridade
social, composta, de acordo à definição constitucional, por
assistência, saúde e previdência.
Não
pode a União usar qualquer valor dessas fontes para outro tipo de
gasto que não seja o da seguridade social. Tal
diferenciação não é meramente contábil, mas uma definição
basilar, incontornável, e que se sobrepõe a qualquer exercício
matemático.
A
partir deste princípio legal, o déficit ou superávit, deve ser
mensurado pelas receitas e despesas da seguridade social,
isoladamente, cabendo o custeio das despesas gerais do Governo
Federal, única e exclusivamente, à arrecadação de impostos.
A
única “manipulação algébrica”, utilizando a terminologia
aplicada pelos autores desta argumentação, entre eles o próprio
Estado, ocorre em função do instrumento da Desvinculação das
Receitas da União (DRU), artifício implementado em 1994, no âmbito
do Plano Real, e que vem sendo prorrogado, desde então, mais
recentemente em agosto de 2016, quando além de prorrogar a DRU até
2023, foi aumentada a desvinculação das receitas de 20% para 30%, e
estendidas às desvinculações a diversas receitas estaduais e
municipais.
Este
artifício, sob a forma de Emenda Constitucional, permite ao Governo
Federal destinar, para onde quiser, o equivalente a 30% do valor
arrecadado pelas contribuições sociais, as já referidas
contribuições (exceto a previdenciária), que deveriam ser
aplicadas em sua totalidade para a Seguridade Social.
Vamos
aos dados concretos e utilizaremos, sempre para efeito de comparação,
os valores a preços correntes obtidos de fontes oficiais*.
No
ano de 2016, segundo os dados do Governo Federal, as receitas
primárias do orçamento da seguridade social totalizaram R$
613.179,3 milhões, enquanto as despesas primárias atingiram R$
871.842,5 milhões, gerando um déficit de R$ 258.663,2 milhões.
Esquecem-se
dos efeitos da DRU na redução das receitas primárias da
previdência. A
somatória da arrecadação das receitas federais, em 2016, do
COFINS, PIS/PASEP e CPSS, segundo dados da Receita Federal, totalizou
R$ 326.607 milhões, enquanto os dados do orçamento da seguridade
social demonstram ingressos de, apenas, R$ 211.701 milhões, ficando
claramente explicitado o desvio de R$ 114.906 milhões, de valores
constitucionalmente vinculados para o Tesouro Nacional, através do
mecanismo da DRU, direcionando estes recursos para pagamento de
gastos gerais do Governo Federal.
Fica,
desta forma, comprovado que 44% do chamado déficit do orçamento da
seguridade social, em 2016, é gerado exclusivamente pela aplicação
do artifício da DRU.
O
próprio Executivo Nacional não oculta que parte do valor arrecadado
em função da DRU será destinado, anualmente, à geração do
superávit primário, ou seja, como reserva de recursos para o
pagamento da dívida pública, pois uma de suas funções é
“contribuir para a geração de superávit nas contas do governo,
com o objetivo de interromper a trajetória recente de crescimento da
dívida pública”.
A
matemática não comporta aventuras.
O
fato é que a DRU retira receitas da seguridade social e contribui,
significativamente, para sua inviabilização. Mas
não é só, pois revisando, também, a arrecadação do Regime Geral
da Previdência Social (RGPS), em 2016, encontramos outro
significativo fator de desvio de ingressos no orçamento da
seguridade social, que são as denominadas renuncias previdenciárias,
que totalizaram o valor de R$ 43.420,6 milhões, ou seja, quase 17%
do chamado déficit do orçamento da seguridade social.
E,
em complemento, em nossa opinião, ancorada na Constituição
Federal, nos obrigamos a defender que antes de aprovar a tal reforma
que, como apresentada, prejudica diretamente a população, deve ser
feita uma profunda análise, uma auditoria completa, nas contas
públicas da seguridade social, começando pela apuração dos
valores não arrecadados gerados pela inadimplência de muitos
contribuintes, estimada em mais de R$ 400 bilhões, separando o joio
do trigo, descartando os valores podres, portanto incobráveis, e
cobrando duramente aos demais devedores.
Em
suma, é fundamental que seja aberta a “caixa preta” da
seguridade social, em nome da transparência necessária dos gastos
públicos, onde fique claro quais são as receitas e os gastos totais
reais da seguridade social,
constatando verdadeiramente os resultados, sejam eles superavitários
ou deficitários, em sua dimensão real.
E,
claro, o que aparenta ser mais difícil, que é proceder a análise
das despesas gerais do Governo Federal, inclusive as decorrentes das
sempre ascendentes despesas com o pagamento da dívida pública,
constatando o verdadeiro rombo, sem criatividade matemática ou
ocultação, camuflando a informação.
Só
a partir destas informações reais poder-se-á proceder aos cálculos
atuariais previdenciários adequados, sem a “desidratação” de
recursos que ocorre pelos vários desvios supramencionados que, uma
vez corrigidos, permitirão uma análise mais isenta e precisa da
amplitude da reforma de que o Brasil necessita, sem a transferência,
a toque de caixa, dos ônus da conta, diretamente aos cidadãos.
Assim,
o povo, informado corretamente, sem propaganda e ocultação de
informação, poderá fazer a escolha de a quais prioridades atender,
através de seus representantes no Congresso ou, por que não, de
forma direta?
Marcus
Vinícius Ramos Gonçalves
é
Presidente da Comissão de Estudos de Comunicações da OAB-SP,
professor da FGV-SP e sócio do escritório Bertolucci & Ramos
Gonçalves Advogados.
José
Francisco F. Marcondes Neto
é
economista formado pela FEA - USP e empresário.
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